A mesa de Natal estava quase arrumada. Faltavam apenas o castiçal e os adornos
florais para que estivesse pronta, e Carolina trazia-os de uma caixa no meio da
sala, distraída e satisfeita. Dispunha os últimos itens com esmero,
ajeitando-lhes as posições, harmonizando os espaços, sorrindo e cantarolando
mentalmente.
Ao finalizar a tarefa, jogou-se preguiçosa no sofá, uma perna para cima e outra
para baixo, e pôs-se a admirar sua obra prima.
Mesa lotada, todo mundo rindo. Tio Antônio contando piadas e as crianças, alegres, derramando farofa e refrigerante na toalha das mesas. Marcelo
troca olhares de cumplicidade comigo enquanto rimos das anedotas. A vela de pitanga
acesa exala um cheiro amoroso que me faz feliz.
A sala é invadida por Cida, a mãe de Carolina, que vem correndo da cozinha como
que em fuga. Atrás dela, Luís, seu esposo, vem chutando vasilhas de plástico,
uma caixa de panetone e algumas frutas, vociferando contra a cônjuge.
Carolina salta de súbito, retirada de seu momento contemplativo, e ajeita-se no sofá,
juntando as pernas e unindo as mãos. Olha cinco segundos para a cena que se lhe
apresenta e baixa a cabeça em desconcerto. Passa a encarar o carpete.
Caminho num campo de girassóis desses de filmes, onde o vento bate, sacudindo-me os
cabelos e o vestido claro. Visto um vestido claro, desses com pequenas flores e
rendas nas bordas. Meu cabelo solto brilha e balança, mas não fico despenteada.
Corro passando os dedos nas pétalas e miolos, e sinto o frescor do vento
afagar-me a pele do rosto e o canto dos olhos.
Uma bomboniére é derrubada no chão com violência, deixando cacos de vidro e doces
espalhados, numa bagunça colorida. Carolina faz que vai catá-los, mas a mãe
estende-lhe a mão em sinal de que não se mova. Braços e saliva cruzam o ar
entre o casal. Carolina agora mira uma bola na decoração da árvore.
Marcelo aparece por entre os girassóis. Fica parado, me olhando. Paro de correr e sinto
uma mornidão percorrer-me o corpo. Encaminho-me em sua direção lentamente. Ele
sorri e vem ao meu encontro, também com vagar. Poderíamos andar um na direção
do outro até o fim de nossas vidas.
Um estalo ecoa no cômodo, como se ressoasse dentro da própria Carolina, que pula,
dessa vez mais alto, mais sobressaltada. Os olhos arregalados e a boca aberta
com violência parecem abrir passagem a uma alma em fuga. Um tapa.
Um tapa na cara da mãe, agora estirada por sobre o sofá, logo a seu lado, parece
preencher todo o tempo, intermitentemente. Esta soluça com a mão na boca, a
pele vermelha em manchas, que se misturam ao avermelhado filtro que encharca a
visão de Carolina.
Gritos e gemidos perdem mais e mais a coerência, enquanto Carolina comprime os lábios
e encara a mãe caída. Seu peito arfa convulsivo, parecendo querer-lhe abandonar
o corpo. As entranhas ardem e se comprimem como chiclete rosa mastigado. A
náusea que precede o vômito faz Carolina temer que a força lhe abandone,
deixando-a caída de bruços, olhos vidrados na direção do chão, sem que antes
tenha tido a oportunidade de alcançar Marcelo.
Alcançamo-nos finalmente. Nesse momento, olhamos um nos olhos do outro, com muita calma. Não
há pressa. Fecho os olhos e sinto-lhe o perfume invadindo-me os poros, as células, os brônquios. Ele vive em mim mais que nunca e sorrio. Ele também sorri e não
há pressa.
Luís sai em disparada batendo a porta da rua. Cida deixa-se cair mais, ofegando
entre murmúrios confusos. Carolina se recosta no sofá, recobrando o ar
lentamente. As passadas do ponteiro do relógio dão-lhe o ritmo para rearranjar
o coração. Um resto precário de saliva desce-lhe pela garganta, arranhando, mas
não há mais perigo de vômito.
Ao olhar uma segunda vez para mãe, Carolina sente-se vazia, de uma leveza extrema.
Um calafrio perpassa-lhe a nuca num temor de que, de fato, algo de vida tenha
lhe deixado há pouco. A falta de algo que a preencha intimida o interno,
que se torce em nó ressentido.
Estende a mão para mãe, que a aceita, molhando-a, apertando-a. Não se olham. Encarando
novamente a mesa, Carolina amarga o gosto cru da opção de agora. Acovardada,
escorrega sutilmente pelo sofá, enquanto a outra lhe acaricia a mão melada,
suspirando consigo mesma.
Marcelo e eu paramos para sentar na borda de um desfiladeiro. Venta muito e o Sol se
põe. Ficamos em silêncio. Fito a tarde rubra misturada à dança de meus cabelos
e quase o esqueço ao meu lado. A poeira voa bastante e me arranha de leve a
pele. Com as costas curvadas, assento, ouvindo a brincadeira da poeira com o
vento. Não sorrio mais, mas não há pressa...
Muitas vezes fugimos, recriamos lembranças...
ResponderExcluirQuando a realidade é muito cruel.
De quem é o texto?
<3
Ótimo conto! Gosto muito da maneira como você escreve. :)
ResponderExcluirO texto é meu.
ResponderExcluir=)
Fiquei sem fôlego, que texto forte. Lindamente escrito, mas história triste e infelizmente não tão incomum. Uma vez li um livro chamado O Murmúrio dos Fantasmas, que falava sobre resiliência e pessoas resilientes. Pessoas como Carolina que conseguem a façanha de usar a imaginação em meio a tanta dor.
ResponderExcluirBeijos
Tati
PS: Amo seus looks, você é minha musa. Mas como minha paixão pela literatura antecede minha existência, por mim seus posts seriam todos assim.
Fiquei sem fôlego, que texto forte. Lindamente escrito, mas história triste e infelizmente não tão incomum. Uma vez li um livro chamado O Murmúrio dos Fantasmas, que falava sobre resiliência e pessoas resilientes. Pessoas como Carolina que conseguem a façanha de usar a imaginação em meio a tanta dor.
ResponderExcluirBeijos
Tati
PS: Amo seus looks, você é minha musa. Mas como minha paixão pela literatura antecede minha existência, por mim seus posts seriam todos assim.
Nossa! Como eu adoro literatura!
ResponderExcluirDesde pequena sempre a vi como um mundo a parte, onde eu poderia criar o que fosse e ser o que eu quisesse. No seu texto eu vi um mundo a parte dentro do meu conhecido "mundo a parte". Por prazer, cheguei a me formar em português-literatura pela UERJ em 2008. Mas, nunca trabalhei na área. Como antes mesmo da conclusão eu já trabalhava com direito, só me restou ingressar na faculdade de direito em seguida. Quem sabe um dia...
Adorei seu conto, Aline! Continue sempre nos brindando com essas maravilhas!
Beijos!!
Dani, tb me formei em Português-Literaturas na Uerj! O mundo é um ovo, não?
ResponderExcluir=)
Oi Aline ,
ResponderExcluirEstou com uma lojinha lá no tanlup.
O nome é Lowbrow e vendemos alguns quadrinhos retrô.
Passa lá:
http://lowbrow.tanlup.com/
abrçs!
Que texto lindo, amiga...
ResponderExcluirJuro, me fez lembrar muita coisa, viu ???
Sou sua fã !!! Ainda comprarei muitos livros seus, tenho certeza.
Beijooocas grandes !!!
Nossa, Aline!! O mundo é muito pequeno, um ovinho de lagartixa! haahha
ResponderExcluirEu sabia que você era formada em Letras, mas não lembro de ter lido sobre a UERJ. Você era de que turno?
Beijos!
Dani, estudei à noite. Me formei em 2004, Fiz especialização em 2006 e mestrado em 2008/9. Tudo na Uerj.
ResponderExcluirPoxa, Aline... Nós poderíamos ter nos esbarrado por lá. Eu também estudei à noite e me formei em 2008, quer dizer, por causa da greve o último período de 2008 se estendeu até o início do primeiro semestre de 2009. Já no segundo semestre de 2009 comecei direito também lá na UERJ. Não aguento mais! rs São 7 anos só na graduação! Aff!! rs
ResponderExcluirBeijos!