Meu primeiro contato com o
escritor belga-argentino Julio Cortazar se deu quando comprei sua primeira
coletânea de contos, Bestiário (1956), num sebo em
San Telmo, da primeira vez que fui a Buenos Aires. Na época, eu fazia curso de
espanhol e achava que seria uma boa oportunidade para me familiarizar com o
idioma e conhecer o escritor, tão citado nas rodas literárias.
A escolha acabou se mostrando pouco profícua porque,
ignorante de que o escritor integrava uma vertente de ruptura, tive dificuldade
tanto em compreendê-lo como em avançar nos conhecimentos da língua. Acabei
deixando o livro para um momento futuro, no qual eu estivesse melhor preparada.
Voltei ao escritor, cerca de um
ano depois, com As armas secretas (1959), livro adquirido num
sebo, com uma linda capa onde figura um saxofonista - menção ao personagem do
conto “O perseguidor”. Estão nessa coletânea os contos “As babas do diabo” -
que teria inspirado o famoso filme Blow up, de Michelangelo Antonioni -
e “Cartas a mamãe”, que também inspirou um filme noir esquisito que
assisti numa mostra de cinema argentino do CCBB. Foi essa coletânea que tirou a
minha “má impressão” com o Cortazar, primeiro porque o li em português,
compreendendo melhor o estilo do autor. Também contribuiu o fato de que As
armas secretas é menos ousado estilisticamente que Bestiário.
Bestiário meio que lança as bases onde o escritor se apoiará nos livros seguintes: o inusitado, o
fantástico, relatos intimistas, ambigüidades, criaturas mágicas, finais inexplicáveis que em vez de
encerrarem as histórias abrem-lhes para novas interpretações. O autor logra em
construir um clima de tensão e de mistério que se desenrola em finais
surpreendentes, como em “Casa tomada” e “Ônibus”, que deixam o leitor à deriva.
“Carta a uma señorita em París” e “Cefalea” introduzem as criaturas e o
universo imaginários que singularizariam o escritor. E tudo isso é conduzido por narrativas simples, que simulam, muitas vezes, relatos confessionais.
Em As armas secretas,
Cortázar segura um pouco a mão no absurdo e dá um tratamento um pouco mais
cuidadoso à escrita, em relação ao primeiro livro. O fantástico e os desenlaces
surpreendentes ainda estão presentes em “Cartas a mamãe” e “As babas do diabo”;
e há novamente o relato intimista – repleto de hesitação, angústia e confusão
psicológica no pungente “O perseguidor” - e o suspense do perturbador “As armas
secretas”. No entanto dessa vez, nota-se o emprego de metáforas mais inusitadas
e criativas, e uma cor mais universal na composição dos textos.
Uma grande sacada nesses dois
livros é o narrador pouco confiável, sujeito às traições da memória, às
reconstruções inconscientes, ao devaneio quase delirante que contamina a
narrativa e turva a “compreensão” dos fatos. É o modo através do qual Cortazar
tematiza o processo criativo, a invenção, obrigando o leitor a concluir as
narrativas por si. No conto “As armas secretas” e em “Lejana”, de Bestiário,
esse fenômeno é exacerbado na múltipla perspectiva dos fatos.
não resisto a fotos de escritores com seus gatos ♥
É preciso dizer que essa resenha
só existe por causa de História de Cronópios e de Famas, que
adquiri nessa última viagem a Buenos Aires. Publicada em 1962, essa coletânea
de contos é um chute na porta, uma voadora na cara em relação aos outros dois
(ele ainda publicou Todos os fogos o fogo, em 1966, que não li).
Iniciei a leitura no avião, dando
muita risada e tendo uma grata surpresa. Como já sabia que iria escrever sobre
ele, resolvi reler logo os outros dois para tecer possíveis comparações e
compreendê-lo dentro de um contexto mínimo. O livro, que eleva os recursos de Bestiário
à enésima potência, abandona o mistério para adentrar o nonsense.
Dividido em quatro partes – “Manual de instrucciones”, “Ocupaciones raras”,
“Material plástico” e “Historia de cronopios e de famas” é um convite à
renovação do olhar sobre as coisas cotidianas. O “Manual de instruções” quer na
verdade que desaprendamos a ver de forma viciada e alheia, instando-nos a nos
ater cuidadosamente sobre as pequenezas do mundo, como se o olhar detido e
muito aproximado destituísse os objetos e fatos de sua familiaridade, assumindo
um caráter novo e, por vezes, bizarro.
O exercício criativo é novamente
posto em evidência através da narrativa lúdica, claro exercício de
criatividade. Aqui, a referencialidade é posta em xeque, sob nova
perspectiva, como os hábitos inusitados e esdrúxulos das famílias e personagens
de “Ocupaciones raras”. A descrição das personagens insere-se, por vezes, na
tradição do realismo maravilhoso, que se utiliza de alegorias para fazer menção
ao real. É o caso das criaturas imaginárias da última divisão: os cronópios, as
famas e as esperanças têm seus correspondentes no mundo real, servindo como
divertidas caricaturas dos tipos humanos, como metáforas lúdicas. Buenos Aires e seus moradores
aparecem nesse livro, e um pouco nos outros dois, sob uma abordagem estetizada
que se apropria das diferentes peculiaridades no que elas têm de mais original.
Cortázar busca manejá-lo de modo a elevar o particular da realidade urbana
portenha a um caráter mais universal. E o faz com humor.
É sintomático que seja este o
livro que antecede o celebrado O jogo da amarelinha, romance
cujos capítulos podem ser lidos em diferentes ordens. Há quem
questione a qualidade das obras do escritor, considerando-as leituras
adolescentes. Esse tipo de julgamento é comum com autores cujos textos conseguem
promover uma identificação mais imediata pelo leitor (Salinger?). E é
claramente o caso História de cronópios de famas, que é a um
tempo tesouro e brincadeira. Uma homenagem, uma louvação à literatura e à
imaginação e um convite ao rechaço da vida como alienação e rotina embotada. Um refresh do olhar que permite que reavaliemos também a nós mesmos.
É
desses livros que se ama ou odeia, que se adota para a vida ou se abandona
antes do fim por excesso de presepada. Creio que nem preciso dizer qual desses
dois foi o meu caso, não?
;)
Sou louca para ler Cortázar, mas tenho essa cisma de que quero ler as principais obras dele em espanhol! Acho que vou parar de cisma e ler de uma vez depois desse seu post! Quando vi você falando (acho que no twitter) que teve sensações semelhantes a que teve com Borges, me convenceu!
ResponderExcluirBeijo Line ;)
Tati
Tati, tenho estado um pouco mais à vontade pra ler em espanhol ultimamente. Estava muito crua quando peguei o Bestiário pela primeira vez, e como a narrativa oscila entre o poético e o coloquial, eu achava que estava lendo errado, que não estava entendendo.
ExcluirEncarei Bestiário e História de cronópios na língua original e deu tudo certo. Se você conhecer o idioma, talvez valha a pena. Meu desafio agora é Rayuela, que comprei lá em Buenos.
Mas recomendo que vc o leia de qualquer jeito, anyway!
;)
Amei essa sua resenha. Na época que você publicou o post, eu ainda não tinha lido nada dele e não quis estragar nenhuma surpresa. Hoje, tendo lido Bestiário e As armas secretas, e com viagem programada pra BA, foi uma delícia ler o post todo, e me fez querer encomendar Histórias de Cronópios e Famas tipo agora. Quando se fala de nos ater às pequenezas do mundo, na hora eu fico muy atenda.
ResponderExcluirBeijão