Decidi iniciar meu projeto de #LerMaisShakespeare pela tragédia Rei Lear porque essa era uma das peças que eu nunca havia lido. Por acaso, acabei escolhendo uma das últimas e mais complexas tragédias do autor. Rei Lear é tão complicada que durante anos foi considerada impossível de ser montada de acordo com o texto original, e suas execuções nos palcos ingleses, durante 150 anos, foram mutilações que suprimiam personagens, alteravam a motivação das ações e modificavam o seu desfecho. Ao longo de todo esse tempo, o público simplesmente não teve acesso ao real texto de Shakespeare, que só foi reutilizado integralmente numa montagem já no século XIX (!!).
Após ficar mais conhecida do público e da crítica, a peça original passou a ser considerada tão importante e rica que ganhou os apelidos de "Capela Sistina" e "Nona Sinfonia" do teatro. Essa magnitude se deve não só ao brilhantismo da trama ou à grandiosidade do protagonista, mas também ao andamento devastador da peça.
O texto é tão cheio de detalhes que a tarefa de resumi-lo sem prejudicar seu significado se mostra consideravelmente difícil. Também não quero entregar a história toda, para não desestimular quem ainda não leu mas pretende. Tentarei apresentar os fatos essenciais, guardando os momentos mais críticos para a sua posterior leitura. Em seguida, tentarei comentar as questões que me parecerem dignas de destaque, esforçando-me por não esmiuçar demais o texto. A ideia é mostrar porque a peça é interessante e merecedora de atenção.
:)
King Lear and The Fool in the Storm - William Dyce
A PEÇA
Lear, rei da Bretanha e idoso de mais de oitenta anos, deseja despojar-se de maiores responsabilidades e preocupações nessa última fase da vida e decide dividir seu reino igualmente entre as três filhas, Goneril, Regane e Cordélia.* Antes de fazê-lo, pede que elas expliquem por que o amam, numa espécie de campeonato de declaração de amor, a fim de conceder um prêmio extra àquela que se sair melhor. Secretamente, Lear torce pela filha favorita, a caçula Cordélia, mas as coisas não saem como o esperado. Goneril e Regane oferecem discursos tão empolados e aduladores quanto falsos, enquanto Cordélia se recusa a participar dessa encenação ridícula, afirmando que o ama, sim, mas por dever e gratidão, e não por nenhum motivo extraordinário.
Irado e com o orgulho ferido, Lear deserda Cordélia, amaldiçoando-a e dividindo seu reino apenas entre as outras duas. Cordélia se casa com o rei da França, mesmo sem dote, e vai embora. É o início do infortúnio de Lear. Destituído de efetivo poder, Lear passa a ser desprezado pelas filhas mais velhas, que querem-lhe reduzir completamente a influência. Paralelamente à história principal, há a história do conde de Gloucester, que é convencido por seu filho bastardo, Edmundo, através de testemunhos e bilhetes falsos, que está sendo traído por seu filho legítimo, Edgar. Assim como Lear, Gloucester cortará laços com o filho de forma imprudente e injustificada.
Desprezado e abandonado em meio a uma tormenta, Lear acabará enlouquecendo em virtude do sofrimento. Ele vaga pela tempestade, seguido do Conde de Kent, a quem renegou. Fiel a Lear e ciente do perigo e da injustiça que se impõem, Kent decide se disfarçar, para servir, acompanhar e proteger seu rei. Juntam-se a eles, ainda, o Bobo, remanescente do séquito real, e Edgar, banido e disfarçado de louco. Mais tarde, chega também o Conde de Gloucester, que pretende alertar o rei, e que mais tarde será vítima da crueldade de Goneril.
Um dos clichês relativos às tragédias é que todos morrem no final. Quem morre, quando, como ou por quê, deixarei para que vocês descubram quando forem ler.
Rel Lear lamenta a morte de Cordélia - James Barry
OS BONS, OS JUSTOS E AS VÍTIMAS
Cordélia, Kent e Edgar são os incorruptíveis. Fiéis, justos e leais, representam a natureza civilizada do homem na peça. Northrope Frye e Barbara Heliodora comentam que a palavra "natureza", em Rei Lear, é muito explorada de modo a estabelecer a diferença entre a natureza humana, "gentil" (kind) e a natureza selvagem (unkind). Cordélia, Kent e Edgar, com sua civilidade, lealdade e respeito a autoridade, representam a natureza humana e gentil, normalmente garantida através do respeito às leis, aos laços familiares, à religião e à cultura.
O Rei Lear e o Conde de Gloucester não são exatamente ruins, mas agem com imprudência, são imprevidentes, vaidosos e egocêntricos, e suas ações desencadeiam uma série de infortúnios. Shakespeare chama a atenção para a responsabilidade do indivíduo, para o fato de que toda ação tem consequências — não necessariamente as pretendidas.
OS ALGOZES
Goneril, Regane (e seu marido, Duque da Cornualha), Edmundo e o assistente Oswaldo representam a natureza selvagem de quem não respeita leis, laços, autoridade ou cultura. Eles operam sob a lógica da sobrevivência do mais forte.
O BOBO
Duas palavras muito exploradas no texto são "bobo" e "tolo". Elas são usadas tanto para indicar a ingenuidade das vítimas, quanto para se referir ao Bobo do rei. Em diversos momentos, Lear, Kent e Gloucester querem crer na justiça divina, querem acreditar que os maus serão punidos e os bons recompensados. O fim da peça irá mostrar que essa não é a lógica universal, que o fim implacável atinge tanto justos quanto injustos, que não há sentido no mundo. Shakespeare aponta para a necessidade de uma visão mais ampla do mundo e da vida, menos fatalista e supersticiosa. Northrope Frye acredita que Rei Lear é a tragédia shakespeareana que mais faz sentido em nossa época, exatamente porque aborda esse dilema tão contemporâneo: o absurdo da existência.
Por outro lado, o Bobo, ao declamar versos tão sinceros e realistas, ainda que revestidos de comicidade,
atua como a consciência de Lear. Proferindo anedotas sarcásticas, que apontam os erros e infortúnios de seu rei da forma mais acachapante, o Bobo intensifica os sofrimento de Lear, ajudando-o a alcançar o entendimento.
O APRENDIZADO DE REI LEAR
O Rei Lear tinha uma visão de mundo muito limitada e egoísta, até cair em desgraça. É quando está sofrendo, decepcionado, traído e despojado de tudo, que ele começa a aprender sobre o sofrimento humano. A partir de então, ele será capaz de se identificar com o restante das pessoas que sofrem, humanizando-se mais, amadurecendo.
Pobres dos nus, estejam onde for,Que recebem os golpes da tormenta.Como, sem ter abrigo ou alimento,Hão-de poder defendê-los seus trapos,Em tempo como este? Eu dei bem poucaAtenção a tudo isso. Ouve, Pompa;Expõe-te ao que suporta o desgraçado,Para atirar a ele o teu supérfluoE o céu ver-te mais justo.
A experiência do engano, gerada no concurso de declarações de amor, mostra-lhe que ele precisa pensar por si, que precisa se esforçar para ver além das aparências. Além disso, fora a sua decisão de deserdar Cordélia e de dar mais poder a Goneril e Regane que desencadeou a ganância, as futuras traições que sofreu, e as disputas entre as irmãs. Shakespeare queria demonstrar ao público a necessidade e a importância de que cada indivíduo assumisse a responsabilidade de seus atos.
CONCLUSÃO
Barbara Heliodora afirma que Shakespeare nutria uma paixão sem limites pela humanidade, um fascínio pelos diversos aspectos do potencial humano. Ela diz que, embora o autor buscasse evitar moralismos, toda a investigação dos processos humanos tinha por objetivo o bem da comunidade.
Rei Lear é produção de uma fase já madura do escritor, e as diversas questões nela embutidas propiciam discussões que extrapolam muito o espaço e os propósitos desse blog. No entanto, apesar de quase aleatória e sem muito critério, a escolha dessa peça para o início do projeto de leitura do autor serviu-me como verdadeiro estímulo, dada a riqueza do texto. Voltarei ao autor com mais avidez e interesse, certa de que ele há de me impressionar e surpreender algumas vezes mais.
_____________
*Optei por utilizar os nomes dos personagens empregados na tradução de Carlos Alberto Nunes.
_____________
Algumas pessoas haviam se interessado em participar do projeto. Sintam-se à vontade para opinar, comentar ou discordar nos comentários. :) As meninas do Fórum Entre Pontos e Vírgulas ofereceram o espaço para discutirmos lá também. Então, no dia 23/05, abrirei um tópico para o Rei Lear na seção "Leituras Compartilhadas". Participem!
_____________
Outros textos consultados:
Por que ler Shakespeare. Barbara Heliodora. Editora Globo.
Falando de Shakespeare. Barbara Heliodora. Editora Perspectiva.
Sobre Shakespeare. Northrope Frye. EdUSP.
"O teatro elisabetano". Marlene Soares dos Santos.
Parabéns Aline!! Ótimo texto sobre esta grande obra que é Rei Lear
ResponderExcluir